A percepção da passagem do tempo na quarentena

Por que, durante a quarentena, os dias parecem longos, mas as semanas ou os meses voam? Apresento aqui explicações para esses fatos, e dou dicas de como manipular estas percepções de propósito.

Durante meu doutorado eu pesquisei sobre como percebemos o tempo passar. Às vezes estamos sob o estresse de não ter tempo, ou com tédio por ter tempo demais. Na minha tese e em publicações científicas discuti sobre estes aspectos, por exemplo sobre a possibilidade de manipular a percepção da passagem do tempo. A noção de tempo está relacionada à disponibilidade de tempo e as atividades a serem feitas nesse tempo. Às vezes é necessário executar muitas atividades com pressa. Em outras situações, não há muito o que fazer, por exemplo quando estamos apenas esperando.

Percepção do tempo e duração

Nós seres humanos possuímos um cronômetro mental automático que grava a passagem de tempo. Com um pouco de treinamento conseguimos determinar a duração de eventos sem auxílio de um relógio. Algumas pessoas conseguem acordar sozinhas para algum compromisso importante na hora certa, sem a necessidade de despertador. Mas no dia-a-dia, este mecanismo é subjetivo: os acontecimentos vividos podem fazer com que o tempo seja percebido como tendo uma duração mais longa ou mais curta do que o tempo marcado por um relógio. Este fenômeno geralmente depende da densidade da experiência.

Tempo passando devagar

É comum dizer que “se ficarmos olhando pra panela, a água não ferve”, em referência à situação em que percebemos o tempo passando vagarosamente. Obviamente o tempo para fervura vai ser o mesmo se estivermos olhando ou não. Mas a expectativa e o tédio farão a espera parecer mais longa do que se formos fazer outra coisa.

Notamos que o tempo está passando através de mudanças no ambiente. Se existirem poucos acontecimentos ou ações num espaço de tempo, as pessoas então perceberão que o tempo está se arrastando, prolongando. Em períodos de espera e monotonia, temos a impressão de que o tempo dura mais do que o normal ou usual. Não há muitas coisas acontecendo para preencher as unidades de tempo. A noção de tempo pode ser mais dolorosa durante momentos de expectativa e quando temos que aguentar atrasos.

Outros exemplos são situações com baixa complexidade de estímulos, quando nosso cérebro não tem muito o que fazer. Imagine estar em uma sala de espera vazia, ou numa cela de uma prisão em confinamento solitário. Prisioneiros não possuem muitas formas de identificar a passagem do tempo além de riscar a parede para contar os dias vividos. O quarto branco, existente em algumas edições do programa Big Brother Brasil, como neste BBB20, coloca os participantes numa situação com poucos estímulos visuais. Sem janelas, sem luz do dia, os brothers não possuem referências e acabam perdendo a noção do tempo, além do risco de sofrerem outros estresses psicológicos.

A passagem rápida do tempo na quarentena

Neste período de quarentena os dias podem parecer uma eternidade. Não podemos sair, encontrar amigos ou participar de eventos sociais. Com isso sofremos um tipo de desorientação temporal devido às rotinas e por não termos contato com o mundo exterior. Os dias parecem longos, arrastados e iguais entre si. E como estão muito iguais, eles se fundem uns nos outros, e já não sabemos em qual dia da semana estamos, ou se um determinado evento aconteceu na semana passada ou na anterior. Essa fusão dos dias acaba por alterar a nossa percepção do tempo a longo prazo. Depois, quando olhamos para o tempo vivido e tentamos avaliar a duração, achamos que as semanas ou os meses passaram num instante.

Mas como pode dias longos resultar em meses curtos? A explicação está na nossa memória. Percebemos que o tempo passa através das mudanças, quando notamos algo diferente. Mas em quarentena perdemos os pontos de referência de que o tempo está passando. Não temos mais as “milestones”, os marcadores que poderiam indicar quando certos eventos aconteceram. Os dias estão vazios e contém apenas atividades rotineiras. Nosso cérebro não recebe estímulos já não tem muita coisa excitante para exercitar nosso raciocínio. Não vivenciamos coisas novas, então não presenciamos coisas que compensariam serem gravadas na memória.

Manipulando o tempo

Dias muito iguais são esquecidos, mas existem formas de alterar este quadro. É possível manipular a percepção de tempo criando ocasiões memoráveis de propósito. A primeira dica é evitar a rotina. Depois, você pode procurar novas experiências e afazeres, de preferência aqueles que envolvem emoções e requerem esforço. Uma forma é criando momentos especiais que possam funcionar como um marco, a partir do qual você identifique coisas que aconteceram antes ou depois. A pesquisadora Julia Shaw sugere escolher um dia na semana para criar este referencial. Ela e o marido organizam noites temáticas sobre um país, envolvendo idioma, culinária e até política, com documentários ou filmes. Pode parecer esforço demais, mas é por isso que funciona. Eventos desse tipo envolvem emoções que geram memória e com isso criam um ponto de referência na linha do tempo.

Podemos também criar marcadores do tempo em outros dias. Talvez escolher um dia da semana pra ligar pra cinco pessoas que não conversamos há tempos? Ou escrever cartas e mandar pelo correio? Podemos também nos envolver em atividades que nos deixem engajados, aticem nossa curiosidade e promovam nosso desejo de aperfeiçoar alguma coisa. Nessas ocasiões o tempo parece que passa rápido devido e esse engajamento. Mas como muita coisa acontece, as horas ficam preenchidas de atividades e criarão momentos memoráveis.

Estado de fluxo

O pesquisador Mihaly Csikszentmihalyi sugere que a atividade ideal pra criar este engajamento não deva ser nem muito fácil nem muito difícil. As habilidades da pessoa devem ser adequadas para os desafios a enfrentar, e este equilíbrio determina o estado mental chamado de ‘flow’, algo que pode ser traduzido como ‘estar no fluxo’. Se o nível de habilidades do indivíduo é mais alto e não existem muitos desafios, a pessoa fica entediada. E na situação oposta, se os desafios são grandes e não há habilidades suficientes para enfrentar estes desafios, a pessoa começa a ficar ansiosa. Num estado de ‘fluxo’ a atenção da pessoa está inteiramente voltada para a tarefa a se cumprir, ela tende a perder a noção do tempo e começa a fazer as coisas espontaneamente e automaticamente, sem precisar pensar a respeito. A pessoa fica envolvida nos desafios, intensamente concentrada e com a atenção investida no desafio presente. A percepção do tempo fica distorcida e isso explica por que ‘o tempo voa quando estamos nos divertindo’.

Se estamos jogando jogos com amigos, quando nos damos conta, uma tarde inteira se foi. Mas isso não quer dizer que estes momentos passaram mais rápido. Apenas que não notamos o tempo passar, não estávamos prestando atenção na passagem do tempo por estarmos entretidos. Se formos parar pra pensar e descrever o que aconteceu nesse período, podemos fazer uma lista grande dos fatos que marcaram a tarde, e aí sim perceber que muito tempo se passou, e que fizemos muitas coisas nesse intervalo.

É possível atingir um estado de ‘fluxo’ com diversas atividades. Por exemplo, executar atividades como tocar um instrumento musical, jogar esportes, dançar, jogar xadrez com um parceiro de mesmo nível, ou jogar algum jogo de tabuleiro ou videogame com amigos. O estado de ‘fluxo’ pode ser promovido até mesmo através de algumas atividades que não são consideradas divertidas, ao se trabalhar com alguma coisa que se goste e que requer um alto nível de concentração. Exemplos incluem realizar uma cirurgia, concertar um relógio ou programar computadores, o que pode trazer satisfação e prazer pessoal.

Um exemplo que ilustra bem esta situação de ‘fluxo’ é o que acontece em cozinhas de restaurantes. Chefes de cozinha geralmente são profissionais talentosos que conseguem gerenciar a pressão de um restaurante cheio. Se as coisas estão indo bem, agendas cheias podem ser prazeirosas. Nessas situações, o talento de uma pessoa está a par dos desafios enfrentados. Entretanto, se os desafios são maiores do que as habilidades, ou se o tempo está mais curto do que é necessário para realizar as tarefas, aumenta as chances de erros e cria problemas. Tensões podem surgir na cozinha quando o cozinheiro possui pouco tempo para preparar os pratos, garçons cobram seus pedidos, e com isso ninguém consegue fazer as coisas direito. No cenário oposto, chefes ficam entediados se os desafios do restaurante não estão a par das suas habilidades.

Sem querer entrar no debate de produtividade na quarentena, creio que é possível fazer melhor uso do nosso tempo. Seria ótimo se pudéssemos usar o “lockdown” para nos aperfeiçoarmos em alguma coisa. Mas reconheço que estamos passando por enormes problemas que afetam nossa saúde física e mental. Nem sempre temos a motivação necessária para fazer coisas diferentes que envolvam esforço. Mas deixo aqui minha contribuição com ideias sobre tempo e memória. E principalmente, faço o leitor pensar sobre a passagem da vida em geral. A intenção é fazer com que tenhamos situações positivas e memoráveis, já que o tempo passado não volta jamais.

Pesquisa

Um projeto de pesquisa no Brasil está investigando a percepção da passagem do tempo na quarentena. O estudo está sendo realizado pelo Laboratório de Cognição e Passagem to Tempo, da Universidade Federal do ABC, em parceria com o Instituto do Cérebro (InCe), o Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, e a empresa NeurUX. Os pesquisadores estão coletando relatos de como as pessoas vivenciam o tempo durante a quarentena. Para participar, acesse o link no site da UFABC.

Luis Carlos Rubino de Oliveira é graduado em Comunicação Social pela UFMG, doutor pela Universidade de Loughborough, no Reino Unido, e atualmente pesquisador na Universidade de Warwick.

A sua tese pode ser lida no site da universidade, e as publicações científicas podem ser acessadas no Google Scholar (em inglês). O exemplo mais relevante sobre a passagem do tempo é o artigo científico que pode ser acessado gratuitamente no link abaixo (em inglês):

Oliveira, Luis, Val Mitchell, and Andrew May. “Reducing temporal tensions as a strategy to promote sustainable behaviours.” Computers in Human Behavior 62 (2016): 303-315. DOI: 10.1016/j.chb.2016.04.004

Um comentário em “A percepção da passagem do tempo na quarentena”

  1. Paper bem posicionado a respeito do tema. Para não entrar em estresse é necessário eleger uma opção do que fazer e do como fazer. Sem “eleições” as mentes, tanto adulta como infantil entram em parafuso. E nem os “homis” podem ajudar.

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